sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

167 – das biografias, 21


Tomaso pensa na história de Tomas. Há algo inquietante nisso tudo, absolutamente leve mas além das suas forças, do seu entendimento. É tudo tão parecido e ao mesmo tempo tão diferente. E se a sua história fosse uma repetição, apenas ligeiramente alterada, de uma outra história, vivida por outro, pensada por outro? E se as suas relações amorosas, seus dilemas e jogos não passassem de um encenar de novo uma mesma peça? Essa pergunta (nada original, é certo) não o abandona, e vai cavando, cavando, como se esvaziasse Tomaso, que de repente se dá conta de estar feliz, feliz como há muito não se sentia. Se a sua vida é uma mesma vida, é ainda uma vida (como, aliás, também deve ser a de Tomas), então está livre, pensa. Não porque tenha assim descoberto o destino ou a divina providência, mas, ao contrário, por pensar que essa repetição, a própria vida é oca, não tem substância, finalidade, nem um antes ou um depois. É oca porque não obedece a nenhum desígnio. É na verdade como um eco, ou um disco riscado que foi esquecido girando: e ele fica assim, até que a palavra cantada se desliga da canção e se torna algo diferente, uma coisa estranha. E essa coisa estranha, enfim pensa Tomaso, sou eu.


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

164 – das novidades, 11


Felícia é uma mulher triste, triste mesmo. Chamam “Felícia”, e logo aparece uma figura com olheiras, ar pesado, voz arrastada, um nem aí com nada, se fede, se cheira, vive ou morre, é tudo a vida, a irremediável lamentação da vida. Em função dessa presença marcante, Felícia foi carinhosamente alcunhada de Hardy pelos amigos mais antigos. Muitos não entendem. Mas o curioso é que sempre que ouve esse nome sendo atribuído a ela, Felícia se sente como recebendo uma boa sorte, como um anúncio da sorte especialmente dirigido a ela. E nesses momentos ela ri, às lágrimas, alguns dizem “como criança”, enquanto outros, talvez com maior acerto, dizem “como uma hiena”. “Oh, vida...” é o que ela diz.


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

156 – das atribuições errôneas, 8


Dois amigos no bar.

– Aquela ali, na mesa do lado, é a síndica do meu prédio.

– E que tal ela, é boa?

– Olha, pra idade que deve ter, até que é.


domingo, 19 de dezembro de 2010

155 – da adequação ao tempo, 15


– Natal também é tempo de oportunidades de negócios. É o caso desta autônoma. Você compra essas peças por quanto?

– Cinco, seis reais.

– E vende por quanto?

– Depende do cliente.


sábado, 18 de dezembro de 2010

154 – da adequação ao tempo, 14


Mudam novos vizinhos para o 202. Um casal. E tudo leva a crer que eles têm só uma chave para a porta da garagem. Sabe disso porque todos os dias, no fim da tarde, a mulher chega, estaciona o carro, liga o alarme e grita: “Renato!”. Às vezes duas, três vezes, quase sem dar tempo entre um grito e outro: “Renato!Renato!”. O Renato deve botar a cara na janela. Então a mulher redunda: “Abre aqui”. O carro fica com ela. A chave da garagem, com o Renato. Não entende a razão disso, mas imagina com certa facilidade – graças às suas lembranças da ex-mulher, provavelmente – uma complexa estrutura de poder e afetos que poderia regular a partilha dos bens – materiais, mas também simbólicos – na relação deles. De qualquer modo, pega birra da coisa. Primeiro passa a imitar a voz da mulher. Ela chega, estaciona e grita; então, da sala do 302, ele manda um eco deformado, mais estridente: “Renato!”. Justifica-se pensando que isso poderia causar algum embaraço nos dois, algum ridículo, de tabela colaborando com o silêncio, que anda cada vez mais raro no condomínio. Mas, no fundo, faz porque é divertido mesmo. Só que logo cansa da brincadeira. Cansa mais ainda dos vizinhos, já sabe exatamente qual o barulho do motor e o alarme do carro deles. Tem vontade de gritar mas para mandá-los à merda. Até que uma noite, uma quarta-feira de vários jogos importantes do campeonato, com o gol que não é nem do seu time, nem contra ele, num ímpeto corre à janela e, em meio aos rojões, desabafa com força: “Chupa Renatooo!”.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

152 – das biografias, 20


Iamuzu envia o achado para Paulo: o manuscrito, raríssimo, que primeiro reuniu a obra dispersa de um velho samurai que desistiu do seu ofício para fazer composições de contemplação à natureza, inaugurando um novo estilo poético. Iamuzu, na cartinha que segue junto na caixa bem embalada, se mostra eufórico e grifa que tudo no gesto desse artista confirma a fluidez e a simplicidade das imagens, como se os traços traduzissem em uma linguagem encantada o mistério inatingível dos rios mais serenos.

Verão nos trópicos, chuvas torrenciais. Com a enchente na avenida, o bói é arrastado, e a moto, e a entrega com o adesivo “frágil – cuidado”, e tudo mais, para um bueiro, que logo entope. Quando, depois de semanas, Paulo finalmente recebe a caixa, o manuscrito resume-se a alguns borrões informes que conservam o pouco que sobrou da tinta original. A caligrafia dos rios virada num leve cheiro de esgoto que não passa.


terça-feira, 7 de dezembro de 2010

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

142 – das atribuições errôneas, 5


O evangelista caminha a estrada seca e deserta. Sente fome, sede e cansaço, mas segue. Avista ao longe um casebre. Quando perto, distingue as letras rústicas, feitas com tijolo, sobre a parede: “Temos almoço”. Ele bate palmas. Uma velha aparece. “Minha senhora, eu tomarei a sua atenção por um breve instante. Tenho apenas dois pedidos. Por favor os ouça. O primeiro é a piedade de oferecer-me um copo d’água. O segundo, mais importante, é para que a senhora e os seus não desistam. Orem bastante, e tenham fé, que com a graça do Senhor um dia vocês terão a janta também”.


domingo, 5 de dezembro de 2010

141 – das novidades, 10


Ator Maravilhoso

Adorei a reportagem com o ator Maximiliano Trípolli na coluna Bate-Papo. Eu adoro o ator e me apaixonei pelo personagem Francisco Apolo em Coração Ardente. Pena que ele morreu logo no início da trama.

Sheyla Suzanna de Medeiros – Três Talhos da Serra


sábado, 4 de dezembro de 2010

140 – das novidades, 9


Alguém pode estar controlando sua mente sem você saber.

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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

138 – das biografias, 19


A testa constantemente ensebada empresta ao rosto de Edgar um aspecto que é algo esquivo. Na verdade, é essa área meio sem sentido que parece escorregar entre o que é propriamente testa e o que é, já, cabeça. Os fios do cabelo partido decidem por dar às vezes mais campo a uma ou outra. Mas como são soltos numa ponta e variam de acordo com o dia, fica esta impressão de um limite que escapa: como se o sentido desse espaço escorregasse, de fato, cabeça e testa abaixo, depois pelo nariz mais afinado e ligeiramente torto, para se sustentar, enfim, nos fiapos do bigodinho. Mas isso é sempre provisório, pois a inquietação persiste. E aquela região cresce sobre o resto do rosto e do corpo, toma conta de tudo, do ambiente ao redor, da máquina que fotografa Edgar, dos olhos que o encaram, da terra que ele pisa, do ar que respira. Agora há um imenso espaço indeterminado, como se vazio, muito silêncio e uns fios de cabelo desgrenhados. Em poucos segundos um bando de gatos aterrissa. Cada um deles se chama Wil, é preto e traz em seu pescoço um barril cheio de areia.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

137 – das biografias, 18


Valentina é das mais divertidas. Nesta manhã ensolarada, ela pedala pela orla acompanhada de uma amiga e a brisa do mar. Sua bicicleta tem uma cestinha rosa, e cobrindo os cabelos ela leva um boné azul bordado com a jovial inscrição get lost! ao lado de uma figura feminina que faz uma careta mostrando a língua. Valentina conta para a amiga, de maneira muito leve, a engraçada história de um tal Chesney, seu apaixonado confesso. “Você acredita que ele dizia assim: Você me faz sorrir com o coração... Você acredita?” A amiga ri, faz que não com a cabeça, pedalando no mesmo ritmo. Para trás, na sombra de um quiosque, na sacada de um prédio, além das pesadas cortinas vai ficando o tal Chesney, que sorriu até o coração secar, virar pó ou explodir.


terça-feira, 30 de novembro de 2010

136 – das biografias, 17


No meio de uma roda de polemistas, ele defende o amigo ausente: “O fato é que a dificuldade que Edouard encontra para firmar a mão é de certa maneira comovente. Não é patologia, não é corpo; é paixão, meus caros, pura alma! Nesses gestos tensos de sua mão vemos todo o sentimento que o inflama. E talvez por isso ele realize tão bem isso que os senhores chamam de manchas obscenas, esses arroubos de verdadeira arte, em vez de caprichar delicadamente as linhas e as formas, como tantos outros, jovens-velhos cansados desde sempre, convencionalíssimos, insistem em fazer”.

A porta do café se abre com violência, o vidro se quebra. “Tomaso, seu filho da puta, cadê meus comprimidos?” Edouard pula no pescoço do amigo. Enquanto o soca, vai falando: “Você quer me ver tremendo, é?... Quer que eu trema até morrer!... Pois veja que beleza... Tremendo... a única coisa que eu consigo fazer... é surrar você...”


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

135 – das condições de leitura, 6


Sobre a mesa de madeira no meio da sala, uma folha em branco, um lápis e uma borracha. Um homem – guia, vigia; amigo, traidor – repete para você, apenas e precisamente, as palavras:

“Você só tem uma chance. Demonstre como ser-bicho”.


domingo, 28 de novembro de 2010

134 – das biografias, 16


Uma agulha de forma curva penetra primeiro um lado da larga ferida aberta, depois o outro, por onde sai, atravessando a linha que garante a sutura. São necessários muitos pontos. O paciente, acordado, não grita, não se debate: parece calmo enquanto terminam o procedimento que coloca no lugar a parte da tíbia que estava para fora do seu corpo. Os dedos do pé, contudo, continuam pretos e somente com alguma sorte não precisarão ser amputados. Élie entra na sala de operações, cumprimenta a equipe, o cirurgião e coloca a mão no ombro do paciente:

“Tomaso, essa foi por pouco. Mas ainda temos que ver o que será do seu pé.”

“Não se preocupe, meu caro. Eu não sinto nada. E agora me diga: o que veio primeiro, afinal, a religião ou a arte?”


sábado, 27 de novembro de 2010

133 – das biografias, 15


“Mas Hélio, e se disserem que você vive metendo o nariz onde não deve?”

“Ah! Porque eu rodo a baiana? Porque eu subo o morro pra descer com ele? Porque eu vivo a roda-viva do nosso tempo? Porque é a vida, sim, que me chama. Qual é!”

“Não, não era bem isso... Foi uma piada infame, deixa pra lá.”


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

132 – das biografias, 14


A discussão com a esposa, logo pela manhã, ainda incomoda. “Mas que diabo de mulher!” Ele aperta o volante, se irrita com a música, mexe no rádio, uma outra estação, La vie en rose. A caminho de uma última entrega. Acende o cigarro, meio cantando, ouve o grito que chega tarde.

“Roland!”

O caminhão sente um impacto. Ele sente um impacto, e para.

Tomaso corre até o meio da rua chamando por Deus.


terça-feira, 23 de novembro de 2010

129 – das biografias, 13


“Eu vejo tantas janelas... E pensar que em cada uma delas escorre uma vida, ao menos, e sua imensa solidão, com suas mesquinharias, sofrimentos, sujeições de toda espécie e, é claro, algumas pequeninas alegrias que trazem a sensação de certa liberdade, mas que de fato mascaram a bruta, a pesada matéria da realidade, isso que nos arrasta bem ao rés do chão. E são muitas, muitas janelas, não? Em prédios sem fim, cidades que terminam em novas cidades, ainda mais vastas, devastadoras. E quando chega a noite todas essas janelas se iluminam, como se gritassem com um brilho silencioso, na direção do escuro, o incontornável da existência e...”

“Certo, Jean, já entendi. Temos que ser pragmáticos nessas horas. E a solução, eu lhe digo, é uma verdadeira revolução nas concepções urbanísticas: janelas imperceptíveis, totalmente integradas , ou melhor, totalmente camufladas na própria fachada dos prédios. Abertas ou fechadas, de manhã ou à noite, é como se não existissem! Está vendo? Design top de linha. Que tal?”


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

128 – das biografias, 12


“Ali, Georges, está vendo? Paradinha na árvore, naquele galho mais fino.”

“Isso não dura, Tomaso...”

“Como não dura?!”

“A não ser que você esteja pensando em matá-la.”

[...]

“Você não está pensando nisso, não é mesmo?”

[bate um vento mais forte que talvez a tenha salvado]


domingo, 21 de novembro de 2010

127 – das biografias, 11


“Duas figuras centrais na tese, são elas capazes de nada, nada mesmo. E são elas absolutamente diferentes, ou ainda igualmente diferentes: polares. Então tudo se articula em torno disso. Duas figuras extremamente originais, centrais, tanto uma quanto outra, capazes de nada e assim tragando tudo ao redor, em suas diferenças.”

Tomaso fecha o livro e observa Herman, do outro lado da rua, acenando. Deveria levantar-se, pagar o café e atravessar o asfalto para encontrá-lo. Olha para baixo, vê que colado à sola do seu sapato, na calçada, está um recorte de jornal: “Escritório de Advocacia contrata:”.


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

125 – das passagens, 8


Quando escreve... , até o fim e chega. Mas logo alguma coisa acontece e o limite se ri, parece que lá de fora, e bem alto, mas não: ei – ouve-se baixinho, estranho, bem aqui.


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

124 – das condições de leitura, 5


Um cubo revestido por completo de veludo negro sustenta uma forma harmoniosa de mármore polido. Um cubo oco de vidro temperado. Asfalto sustenta esse cubo. Asfalto onde há um canino de primata incrustado na superfície. E um denso tapete – de um verde-grama dos mais vivos – cobre de ponta a ponta esse asfalto.


quarta-feira, 17 de novembro de 2010

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

121 – das condições de leitura, 4


Cinco jacarés de avental colocados em volta de dois berços com ovos vermelhos e vermelhos com listras brancas. Os ovos parecem ser de uma proporção incomum: são maiores que as bocas dos répteis. De uma armação no teto pende um mosquiteiro de tule que envolve apenas os berços, não os jacarés. No canto, uma inscrição: “Plano de Segurança Pública”.


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

117 – das novidades, 8


Susto: força que se caracteriza e manifesta pelo estado de ameaça, capaz de causar estranhamento ou desencontro momentâneo entre os movimentos do corpo e do espírito. Decorrência imediata que deve ser frisada: se tal força passar da potência ao ato já não mais poderá ser considerada uma ameaça, e sim deverá ser medida pelos efeitos manifestados por sua ação. Em outras palavras: susto é uma manifestação da não-manifestação. Tal condicionamento paradoxal pode ser facilmente visualizado na seguinte situação, como hipótese absolutamente palpável: um sujeito que acorda no meio da noite, vai ao banheiro e se depara com outro alguém que tão logo se apresenta como um maníaco psicopata, em surto, com uma máscara de filmes de terror “B”, uma cabeça de manequim ensanguentada com ketchup numa mão e uma foice na outra, rumando em sua direção com pés arrastados (mas velozes) e grunhindo ferozmente. Pois bem, se a aparição dessa figura for apenas uma brincadeira de um irmão, ou um primo, ou um amigo insone, o sujeito terá certamente vivido um susto, e este assim poderá ser definido, com toda propriedade, já que a vida do sujeito em nenhum momento foi concretamente comprometida por aquela obscenidade. Agora, se o maníaco for mesmo um maníaco (e a cabeça for mesmo de uma pessoa morta, e o ketchup for sangue de verdade, e por mais estereotipado que seja esse seu surto de ação maníaca: uma máscara, uma cabeça decepada, uma foice... convenhamos!), se o maníaco for mesmo um maníaco podemos supor que o sujeito que imaginamos primeiro deverá ter a sua vida não apenas ameaçada, mas com grande probabilidade ele a perderá, isto é, ele morrerá mesmo, assassinado sem piedade pelo psicopata descontrolado. Em suma, neste caso a potência (da ameaça) passará plenamente ao ato (a execução), que depois de consumado não deixará mais risco e tampouco possibilidade de susto para aquele sujeito que restará sem vida, no chão gelado, a caminho do banheiro. Alguém poderá afirmar que houve, entretanto, um susto no entre-lugar, isto é, no ponto em que o psicopata ainda não havia se revelado como tal, somente grunhia e agia como um. A esse alguém eu responderia o seguinte: defendo a concepção (talvez a da maioria dos colegas) de que nessas condições os últimos instantes nem poderão ser definidos ou atravessados pelo susto, não poderíamos assim chamá-lo, porque isto, com efeito, já seria outra coisa, talvez indizível, mas que podemos sugerir fosse um pressentimento da morte limítrofe, como se corpo e espírito não se estranhassem ou desencontrassem em função da ameaça, mas reagissem, em conjunto, em fuga ou combate, à morte iminente: assim, não seria um susto, mas uma antecipação da agonia, uma agonia (um gozo?) precoce. Em suma: para que haja susto é preciso uma indeterminação que faça corpo e espírito discordarem quanto à reação necessária para uma situação específica e, mais que isso, é preciso que tal indeterminação apenas ameace a integridade do sujeito, mas não a comprometa de fato, para que haja um tempo – posterior, simultâneo – em que as coisas ficam, digamos, sem chão. E isso, claro, excetuados os casos das pessoas que morrem não do ato resultante de uma potência mas da suspeita que não se confirma, ou seja, da própria ameaça. Esses são os casos das pessoas que morrem de susto, literalmente, e devem ser analisados à parte, já que nestes casos as pessoas morrem na hora errada, creio que sem agonia (nem gozo), muitas vezes antes do tempo.


sábado, 6 de novembro de 2010

112 – da topografia do tempo, 2


Na cozinha tem uma mariposa que vai sobrevivendo sem muito esforço, levada pelas térmicas que sobem da panela de arroz. As porções serão levemente empapadas, com cebolinha bem picada. É mãe a menina que costura ao lado, na máquina arcaica, pesada de tanto ferro fundido e memória. Essa menina aí, dentes com pouco cálcio e bicos dos seios rachados. O range-range termina de furar a pele do vestido que será velho, de qualquer maneira. Um estranho entra por aquela porta lateral e se dirige, mudo, para o meio. Traz um martelo e ouve um sino de bronze lá fora. Alcança um pote de vidro empoeirado, tenta desenroscar a tampa. A mariposa voa até a boca do pote, pousa e desaparece. No quarto, vento é um tufo de poeira e cabelo.