segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

198 – das biografias, 41



Roberto queria ser artista. Para a sua frustração, acabou publicitário; mas então fez um bocado de dinheiro com isso, a ponto que esqueceu seus anseios juvenis e virou um feliz e insigne profissional. Desse modo, podemos admitir que Roberto contribuiu muito para a história do Ocidente. Do seu legado, com vasta circulação de Paris a Montevidéu, de Caracas a Jacarta, de Jacaraci a Viersgt etc., sem dúvida destaca-se o posicionamento estratégico inaugurado por ele através do que ficou conhecido entre as agências como “slogans generiúnicos”, alguns realmente geniais em sua capacidade de servir tanto a produtos com segmentos absolutamente específicos como a outros de grande abrangência de público e mercado: “Perfeito para você, perfeito para nós”; “Ideal para o seu futuro, agora”; “Maravilha é estar com você”; “Faz parte da sua vida”; “Para você que quer sempre o melhor”; “Para você que está sempre à frente”; “Você em primeiro lugar” – esses são alguns dos muitos slogans generiúnicos criados por Roberto. De todos eles, no entanto, o mais famoso é aquele que foi utilizado primeiro por uma marca de pizzas congeladas, posteriormente empregado por uma grande rede de bancos com atendimento online e, ainda depois, por uma marca de absorventes de uso interno, que acabou renovando o direito de mantê-lo nas próximas campanhas: “Com você a qualquer hora do dia”.



domingo, 30 de janeiro de 2011

197 – das biografias, 40



O caso é que, entre Tomaso e Roger, existem outras disposições a respeito das diferenças e do agir social. Vera, por exemplo. Eis uma figura difícil de situarmos. Porque talvez a sua questão deva ser colocada não tanto em termos de avanço ou recuo junto ao próximo, isto é, não como estratégia de combate, mas sim em termos de uma sensibilidade imediata. O que é sem dúvida um problema já que essa sensibilidade, como em qualquer pessoa, é tão previsível quanto o formato das nuvens do dia de amanhã; ela muda de instante em instante, de dia em dia e, especificamente em Vera, de óvulo em óvulo, sobretudo. É portanto uma questão de duração, de agarrar o que se tem nas mãos: Vera reage ou age de acordo com um tempo que é sempre o único e o último, a cada momento. E por isso sua disposição não pode ser situada de maneira ordeira, mas sim, quem sabe, por uma espécie de harmonia que tem lá o seu encanto: como uma vontade passageira e definitiva de arrancar as cabeças e lamber os pés de todos.


sábado, 29 de janeiro de 2011

196 – das biografias, 39



Diferente de Tomaso, Roger sempre encontra correspondências muito claras entre a vida humana e a de outras espécies, um empreendimento que acaba diminuindo a importância dos homens e, consequentemente, abala a sua supremacia em relação às demais criaturas do mundo. Uma das coisas que Roger admira nos humanos, por exemplo, é a sua capacidade de desaparecer. Digamos assim, se Tomaso fosse confrontado por uma situação atípica e ameaçadora, ele insistiria em avançar e atacar até fazer do outro a sua presa, ou pelo menos até fazer do outro um aliado. E isso para ele seria natural. Roger, por sua vez, se disfarçaria de folha, de nuvem, de neve, de areia, de seja lá o que predominasse em volta, adotando como técnica de combate algo que vai além do fingir-se de morto: seria mesmo um fingir não existir. Logicamente, da opção de Roger não emana muito heroísmo. É que na verdade Roger insiste num ponto que Tomaso finge não ver: num mundo em que todos são predadores (e, portanto, presas), vantagem é, simplesmente, poder não ser.


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

194 – das biografias, 38



Tomaso e Roger são muito parecidos, como bons amigos costumam ser, mas absolutamente diferentes em alguns aspectos, como não raro também ocorre com amigos. A maneira de cada um conceber a vida e a humanidade, por exemplo, ou ainda, para falarmos com algo mais imediato, o modo como um e outro se colocam diante da necessidade de se fazer sociável. Para Tomaso, mesmo que essa necessidade seja uma imposição do meio que construímos (em outras palavras: mesmo que o homem não seja a priori um ser social), o caminho é a interação, aparando-se as agudezas das diferenças para que possamos viver sem o assassínio e de modo que a meritocracia prevaleça naturalmente. “Naturalmente”, isto é, no jogo das diferenças polidas necessárias ao “fazer-se sociável” (poderia ser qualquer outro jogo) tem mérito reconhecido aquele que se mostrar mais apto, ou seja, “o mais diferente dos diferentes”, o que significa neste caso “o mais diferente dos iguais”. Tomaso é dos melhores jogadores e tem consciência disso. De certa forma, é como se num mundo de especialistas Tomaso fosse alguém especial.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

193 – das biografias, 37




Charles apertava as porcas com uma mão e comia o resto de um pão com a outra quando o sinal tocou. Queriam vê-lo no gabinete do gerente. Meio que deu de ombros, mas não podia deixar de ver do que se tratava. Logicamente, eram vários os caminhos possíveis para quem quisesse ir do galpão das porcas ao gabinete do gerente, e ninguém havia dito qual caminho ele deveria seguir. Lembrou-se do jequitibá rosa que estava em flores na praça ao lado da fábrica. Era sair pela porta principal do galpão das porcas, cruzar o refeitório pela lateral direita, seguir pelo galpão das peças de reposição, pelo almoxarifado, a lavanderia, o estacionamento de visitantes, o pequeno campo de recreação, subir pelo prédio do departamento comercial, sair pela saída que dava para a casa das máquinas, então o departamento de atendimento ao consumidor, a saída de emergência para empregados do setor C, e estaria lá: na diagonal do gabinete do gerente, o jequitibá rosa! E assim foi. E chegou, e se deitou na grama. E dormiu sob a árvore. No sonho que teve, o gerente sorria, cumprimentava com tapinhas nas costas o apertador de porcas e lhe acendia um charuto que, tossindo, ele fumava com satisfação.



terça-feira, 25 de janeiro de 2011

192 – das biografias, 36



Tomaso conheceu Augusto na margem sudoeste da foz do Rio da Prata. Na ocasião, um final de tarde, Augusto aparentemente tentava solucionar dois problemas: um de luminosidade, outro de inquietação alheia, já que seu filho, talvez entediado, talvez com fome, não parava de resmungar, andando de um lado para outro. Tomaso aproximara-se pela peculiar circunstância que servia de motivo para o fotógrafo: uma réplica de um avião de guerra estava fincada de cabeça para baixo num banco de areia. Pela distância, cerca de 100 metros da margem, Tomaso adivinhava que o avião devia ter uns 2 metros de comprimento. “Com licença, por acaso foi o senhor de providenciou o arranjo do avião no rio?”. Augusto, ajustando o foco, respondeu: “Qual o quê, meu jovem! Eu repito que isso só pode ter caído do alto. Agora não me pergunte como ou por qual razão”. Nesse momento, o filho inquieto, que devia ter lá os seus 17 anos, se chegou e estendeu a mão para Tomaso: “Pois o senhor não concorda que não há como? Não concorda que o agenciamento do significado é claro? Essa lengalenga democrática é o que nos atola na lama”.


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

191 – das biografias, 35



Carlos entra no escritório pensando em nuvens e dá de cara com Murilo. Seus coletes são iguais, embora o de Carlos, neste momento, esteja muito bem passado, parecendo ser novinho, enquanto o de Murilo apresenta um aspecto cansado, combinando com seus olhos. “Emagrecendo assim, meu caro, uma hora você desaparece”, observa Carlos, já atrás de sua mesa, coçando o nariz fino e considerando com tristeza a pilha de papéis que preencherá sua tarde. Murilo se agita, sacode a caspa acumulada nos ombros; sabe, é claro, que as coisas não vão bem para ele. Ia começar a lastimar quando Carlos diz baixinho, sem se virar: “Esta janela, Murilo, é o mais longe que eu alcanço. É pouco, mas posso acompanhá-lo até ali. Se preferir voar, aconselho um tantinho de terra nos sapatos, para garantir o pouso. Porque tem gente que, nessa altura de nada, consegue só cair. Um degrau. É tão aborrecido que nem frio na barriga dá. Murilo, gostei do seu colete”.


domingo, 23 de janeiro de 2011

190 – das biografias, 34



“Encontrei Tomaso hoje no terminal”, diz Bionne da porta do quarto.

“Não diga! E como está esse tratante? Disse a ele para aparecer aqui no jantar de amanhã?”, responde Georges, procurando na gaveta do banheiro o seu álbum de família.

“Não, não disse nada”.

“E por que não, ora?”.

“Não sei, ele me pareceu alheio. Na verdade, demorei a reconhecê-lo nas roupas que usava”.

“Você viu meu álbum de família, Bionne?”.

“Aliás, me pergunto o que fazia no terminal vestido daquele jeito”.

“Será que está no armário?”.

“De qualquer modo, pareceu distante, ou como se estivesse acuado, fugindo, sei lá”.

“Se você tivesse cansado ou estivesse fingindo? Como assim, Bionne?”.

“A cabeça, Georges, se eu soubesse onde diabos você está com a cabeça”.


sábado, 22 de janeiro de 2011

189 – da adequação ao tempo, 18



– Quem inventou essa imbecilidade?

– Sei lá. Mas como sempre acontece com toda imbecilidade, o mundo inteiro está fazendo igual.

– Tenho vontade de arrancar seus corações com as mãos.


sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

188 – das biografias, 33



Definitivamente, ela não gosta de bajulações. Mas aceita com todo o coração os elogios sinceros. Ele sabe; e por isso, agora, ao vê-la experimentar uma malha escura, de fio grosso, com uma gola alta que se dobra sobre si, só consegue dizer que lamenta não poder ver o seu pescoço alongado, lindo como o de uma girafa.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

187 – das biografias, 32



Para ela, existem afinal dois tipos de pessoas: aquelas que acreditam que a bondade habita naturalmente o coração dos homens, ou habitou e em algum momento foi sabotada por nossas próprias ações, mas que por ser nossa condição primeira tornará a aquecer nosso músculo involuntário assim que a aceitarmos como destino humano, nosso caminho sem erro, início e fim da vida; e, ao contrário, existem as pessoas que acreditam que natural do homem é o absurdo e a total falta de correspondência em seus atos, assim como não há destino a ser traçado, não há finalidade para a existência nem salvação. Uma disjunção que ela resume nos seguintes termos: há ouro de tolo, e há deserto.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

186 – das biografias, 31



Essa falta de horizonte que somente a paixão pode oferecer. Ela vê sob esta condição algo como gatos selvagens contra ratinhos de estimação, amigos de infância contra colegas de escritório, Mike Tyson contra Woody Allen. Senta-se à mesa, olha nos olhos dele, segura o cabo da faca com firmeza. Ele sorri com doçura, abre-lhe, quem sabe, os caminhos da felicidade. Da pizza de aliche com ricota sobe, parece, um cheiro azul de cianureto. Sem querer, ela perde a fome.


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

185 – das biografias, 30



Ela pensa num banco de areia, na luz do meio dia, numa palavra dura: em qualquer coisa capaz de interromper o fluxo. Quando veste seu vestido mais branco, duas alças passando sobre os ombros, entre elas um pescoço fino se ergue. Aí lembra daquele livro que fala de modo tão engraçado de uma mulher-girafa. O narrador não dá nome a essa personagem, mas compõe com o nome girafa um adjetivo para a mulher, que sem essa identificação poderia ser qualquer uma. Mas mesmo assim talvez não a reconhecesse na rua. Talvez a mulher-girafa, essa criatura tão idiossincrática (por que foi pensar nessa palavra?), passasse bem ao seu lado sem ser notada, como mais um elemento à toa criado pela cidade. Então de que adianta, afinal, esse nome tão preciso? Não serve para nada. Ela gostaria de ter escrito esse livro. Se perguntassem uma coisa que ela definitivamente gostaria de ter feito na vida, responderia: gostaria de ter escrito esse livro. É a maneira como ele flui, as voltas que cria, remansos, penumbras, um desapego sem fim. Como desejar algo que não seja seu contrário? Ela agora experimenta uma malha escura, de fio grosso, com uma gola alta que se dobra sobre si.


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

domingo, 16 de janeiro de 2011

183 – das biografias, 29



O envelope trazia como remetente Roland, amigo querido que, ao morrer, deixaria para Tomaso uma situação difícil de ser superada. Mas esta é outra história. O caso é que Vera abriu o envelope e teve três segundos de ausência. Nenhuma carta, nem mesmo um bilhete; apenas uma foto, impressa num grosso papel. Atrás, nada escrito. Por que aquela foto deles estaria com Roland? E por que ele a enviaria para ela agora, justo agora, em vez de entregá-la a Tomaso, ou talvez de rasgá-la, ou de enfiá-la no cu? Não sabia por quê. Contrariada foi para o quarto e acomodou a imagem na estante, ao lado de outras fotografias queridas. Na janela miava aquele maldito gato que Tomaso havia deixado para trás.


sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

181 – das biografias, 28



Esta fotografia, Margot a encontrou aos 85 anos, após a morte de Tomaso. Nunca a tinha visto, por mais que a composição não deixasse dúvidas: ela estava com Tomaso na ocasião em que ele fez a foto. Foi durante o primeiro congresso de free climbing organizado na Tailândia, quando a modalidade ainda era vista pelos tailandeses, principalmente, como um nome gringo para o suicídio. Para alguns, veio a ser, mas este não é o caso, e aquela foto, mal enquadrada, mostrando tanto azul, aparecia agora aos olhos de Margot como a própria imagem da vida. E assim associou-a definitivamente à figura de Tomaso, redefinindo em consequência muito do que foi a sua própria vida, que aos 30, 40 anos tinha, em sua memória, outros tons predominantes.


quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

18o – das biografias, 27


Quando a primeira edição de Le petit aedibus: Guadalumpen foi publicada, em 1918, Tomaso fez questão de comparecer ao lançamento, acompanhado de Margot, para felicitar o autor. Zackarias Dioi era amigo dos mais celebrados escritores do período, embora aparecesse pouco, e este era seu primeiro ensaio de maior fôlego que vinha a público. Graças à influência de Tomaso e de Costa-Halls, a prestigiada Caroussel Edt. encarregou-se da edição, com direito a recepção para convidados, entre eles Ray Bunllys e Xervrai Gott, além de comentadores dos principais cadernos de cultura. Tomaso, enturmado, era um dos mais felizes, pelo amigo e pelo vinho à vontade. Margot, por sua vez, não aguentou muito tempo o papo do jovem Andrèas Allain – promissor poeta, diziam os críticos, sobrinho da aclamada Allès Agatha Allain – e foi sentar-se perto de um senhor de longuíssima barba branca que dormitava numa poltrona mais no canto, junto da bengala. Sentou-se, certificou-se de estar bem acomodada, abriu um exemplar do livro de Zackarias Dioi sobre o rosto e pôs-se a acompanhar o senhor ao lado, para ela o mais interessante de todos os presentes.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

179 – das novidades, 12


Oriundo ganhou assim, desde o batismo, um motivo de vida que para muitos seria traumático. Mas sua existência seria regida pela falta de lastro, e na adolescência se deu um acontecimento sem dúvida significativo. Foi quando a família o enviou para um final de semana na fazenda, promovido pelo colégio, aquilo que chamam vagamente de curso de férias. “O que acha, Oriundo?”. Não sabia ao certo, mas foi. Na primeira noite, os monitores prepararam as boas-vindas aos jovenzinhos: um bailinho. Sem dançarinos em seu histórico familiar, Oriundo, rapaz introvertido, foi gostando das músicas, ficando à vontade, balançando o esqueleto, como dizem. Em pouco tempo, estava chamando as jovenzinhas para dançar, depois as monitoras (as “tias”) e os monitores (os “tios”), os rapazes também. A animação geral logo esfriou, todos pararam para olhar e o ambiente ficou marcado pelo estranhamento. Mas ele seguiu, com mais molejo que nunca, numa espécie de dança intuitiva que atravessava os mais variados ritmos, sem embaraço: “Querem saber? De onde vem isso eu não sei. O negócio é entrar no clima!”.


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

178 – das biografias, 26


Charles tem uma vontade que está entalada. Talvez seja fome, talvez sono, talvez falta de sexo ou excesso de esperança. Enquanto perambula pela cidade, debate-se: sua perna direita quer ir para a esquerda, a esquerda, para a direita; esse desencontro o faz andar confusamente, em esquisitos círculos. Mas isso, de certo modo, não é novidade. Essa coisa entalada que, no entanto, se impõe. Em outra ocasião, por exemplo, teve de lidar com sua mão direita, que havia manifestado essa espécie de vida autônoma. Ela cutucava em lugares inapropriados as senhoras que passavam na calçada. E foi sua cara, num misto de inocência e espanto, que recebeu, verbal e fisicamente, as respostas escandalizadas das senhoras (por não ter um espelho à disposição, não pôde ver direito o roxo bem marcado que ficou em seu olho esquerdo). De qualquer maneira, neste momento, sua preocupação é conseguir chegar ao porto, de onde todas as tardes vê partir uma nuvem, não sabe bem para onde.


segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

177 – das biografias, 25


Não existe nada mais comovente do que vacas brincando. E esse era o ponto-chave. Por isso Vera tornara-se vegetariana. E costumava explicar a Tomaso, carnívoro irredutível: “Hoje em dia, as vacas já não pastam, não andam e, principalmente, não brincam. Perderam a liberdade por completo. E o que falar daqueles olhinhos tão grandes e meigos? Elas não brincam mais, Tomaso, e ninguém se comove com elas”. Tomaso entendia, até lhe dava razão, mas não abria mão de seu pedaço de vitela. Ou melhor: ele entendia as razões do vegetarianismo de Vera assim como entendia as gargalhadas que ela soltava sempre que ouvia a palavra cônscio. “Ai, Tomaso, vai dizer. Existe palavra mais engraçada? Cônscio! Repete comigo: cônscio! É como soluçar no fundo de um poço engolindo uma azeitona, não é?”.


domingo, 9 de janeiro de 2011

176 – das biografias, 24


Depois de vários meses, Vera decide rever a pasta de fotos que Tomaso deixou em seu computador. Na época em que viveram juntos, ele andava empolgado com a fotografia e as novas técnicas digitais. Foram muitos os registros daquele período, e agora estavam ali parados, ocupando espaço, pesando na memória. Vera concorda em voz alta, sozinha, que muitas fotos são belíssimas, mesmo essas bobas, que eles tiravam de si mesmos virando a câmera. Hesita um pouco, pensa se não poderia apagar alguns arquivos seus, filmes ou músicas, talvez. Mas não, não poderia. Assim como não conseguia apagar as fotografias de Tomaso, que eram, afinal, também suas, da sua vida. “Mas que merda!”, diz ela, “Não aguento mais esse arrasto!” Por fim, recorre a uma das vantagens das técnicas digitais: “Se não dá pra tirar isso da minha vida, que ao menos seja leve, bem leve”. Assim compactou tudo, e aqueles anos resumiram-se a alguns míseros megabytes.


sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

174 – das biografias, 23


Ana olha para cima e imagina que ao menos uma vida deve existir em cada um desses andares, do lado de dentro dessas janelas. Como são essas casas? O que está pendurado nas paredes – e de que cores elas são – e o que foi retirado delas, deixando um buraco, uma rachadura à vista? O que significa tal ímã de geladeira, tal peso de papel cheio de areia, tal caneca de café aparentemente tão comum? O que significa ter ou não um tapete felpudo na sala, diante da estante, e o que significa deixar as chaves sobre a mesa do centro em vez de colocá-las no móvel ao lado, dentro de uma caixinha onde se lê “vivo de molho”? O que pode significar a bagunça ou a organização, a limpeza ou a sujeira? E o que pode significar mudar as coisas todas de lugar e substituir coisas velhas por outras novas, ou então sempre deixar tudo como já está, acumulando pouco, mantendo quase nada? Há um copo com água ao lado da cama na hora de dormir? Há comprimidos? O livro de um amigo? Uma televisão ligada a noite inteira? Há só um colchão? Só a janela aberta, agora, e a cortina branca para fora, no vento, deixando escapar um adeus?


sábado, 1 de janeiro de 2011

168 – das biografias, 22


“Se eu estiver dentro do período de tolerância de 15 minutos e quiser liberar a cancela do estacionamento, eu devo vir ao caixa primeiro, ou é só introduzir o cartão na máquina?”, pergunta Ferdinand à atendente. “É só introduzir o cartão na máquina”, responde ela. “Não preciso vir aqui?”, insiste ele. “Não.”, repete ela, sustentando o sorriso. E é sempre assim: sua obstinação pela certeza do entendimento mútuo através das palavras, sua necessidade quase doentia do cumprimento preciso da comunicação, sua ansiedade diante da possibilidade do significante não coincidir com o significado, em suma, seu esforço constante junto ao outro para certificar-se do que lê ou ouve faz com que Ferdinand sempre dê uma volta a mais. Os amigos riem disso e não deixam escapar as oportunidades para piadas. Os que não são simpáticos à sua pessoa ou que simplesmente não têm paciência, contudo, não apresentam o mesmo senso de humor. “Para eu chegar à lagoa é só seguir reto, não?”. E o passante: “Até o fim da avenida...”. “E ela segue reto?”, aperta Ferdinand. “Ora, meu senhor!...”.