terça-feira, 22 de março de 2011

247 – da adequação ao tempo, 20

Gertrude Carvalho, 23, está dando duro para conquistar o título de Miss Bumbum 2011.

Segundo a coluna “É mole”, do jornal Notícias do Bairro Brasil, ela teve que fazer uma radiografia para provar que seu “derrière” é original de fábrica.

É que a modelo paulista havia sido acusada pelas concorrentes de ter colocado prótese de silicone nas nádegas, o que é proibido pelo concurso.

“Vou esfregar o resultado na cara de quem me acusou”, afirmou ela.

Os jurados não confirmam, mas esse está sendo o momento mais aguardado do concurso.

segunda-feira, 21 de março de 2011

246 - das correspondências, 6

para Roland:

Hoje, sábado, às 07h55 da manhã:
Augusto traz Tomaso e Margot aqui para casa.
Eles entram. Nós acordamos (a Vera, que dormia aqui, também).
Tomaso frita ovos.
Margot e Hélio vão limpar a casa.
Porque era para isso:
Todos chegam às 07h55 da manhã porque é preciso limpar a casa.
Eu vou para o escritório. Tomaso vem atrás, comendo pão com ovo.
Pergunta se todos esses livros estão na minha cabeça.
"Não, longe disso"
"E o que é isto aqui?" - ele se refere ao amuleto em forma de peixe que ganhei de você.
"E esta caixinha azul?"
"É uma medalha que ganhei" - respondo.
"Posso ver?"
Eu mostro a medalha.
Ele sai dizendo que eu sou mesmo uma pessoa muito importante.
E que a nossa língua é a mais complexa.
Nossos dicionários são sempre maiores que os dicionários de inglês.

domingo, 20 de março de 2011

245 - das passagens, 11

Guînller Füik não gostava de pôneis e sentia-se enjoado. Endireitou-se na cama, veio um arroto fundo, então respirou o cheiro de esôfago e sorriu sozinho. Concentrou-se em soltar um pouco mais os ombros. Agora já não entendia a linguagem do filme na TV, mas adivinhava com facilidade, esperto. “Oh, yes! Fuck me! Yes!” A queimadura nas coxas melhorava aos poucos. Quase caía no sono, “oh, meu pai no céu!”, e esticava os dedos dos pés. A Estátua da Liberdade apareceu diante dos seus olhos, peluda e com loura crina, inteira de carne e tomates. “Qual o seu número, senhor?” Füik escolheu o completo.


sábado, 19 de março de 2011

244 - das correspondências, 5

de Tomaso:

Com efeito, todo triângulo tem a soma de quatro ângulos retos, mas não enquanto triângulo, senão enquanto figuras retilíneas, do mesmo modo que os pais têm, em geral, mãos e cabeça, não porque sejam pais, mas por serem, ao mesmo tempo, homens.

quinta-feira, 17 de março de 2011

243 - das correspondências, 4

de Margot:

Testamento. Deixo o que prestar do meu corpo para quem servir. E mais três pedidos: 1) não haver velório (a pessoa mais próxima no momento deverá encarregar-se de me fazer sumir o quanto antes, sem esperar que os olhos dos vivos cheguem de longe para me banhar com seus próprios medos); 2) não haver enterro (o que sobrar do corpo deve ser simplesmente queimado); 3) não haver retenção (a cinza, ou seja o resto dos restos, deverá ser lançada na primeira água corrente que aparecer - com exceção, por favor, de torneiras, vasos sanitários etc.). Fora isso: doar tudo para o "Lar das mulheres que amam demais".

quarta-feira, 16 de março de 2011

242 - das correspondências, 3

de Tomaso:

Encontrei uma fotografia no meio de um romance empoeirado e de pouca força. ("De pouca força", eu digo, mas como afirmar isso?). Há uma moça na imagem, metida num vestido estampado e solto. Pensei que, se fosse hoje, seria Maria Madalena. Mas dizem que ela era pouco virtuosa. Podem dizer isso? (Um vestido estampado, solto, alegre: bom para dar leveza ao peso de uma gravidez, diriam).

terça-feira, 15 de março de 2011

241 - das correspondências, 2

de Tomaso:

Como se fôssemos margear o úmido que o avanço do mar, em ondas, deixa na areia. Há uma diferença não de água, mas de tom. Mais escuro. Mas o jeito com que eu digo isso é grudento, arenoso, pedante até. Na volta a água salgada cava sob os pés. E dizer isso é piegas - ou violento.

segunda-feira, 14 de março de 2011

240 - das correspondências, 1

para Tomaso:

Uma maneira de evitar estas imposições: uma conversa improdutiva, que pode ser longa: como uma queda (até o sonambulismo).

domingo, 13 de março de 2011

239 - das biografias, 64

O livro pertencera a um tal Joseph. Este nome apresentado pela dedicatória no verso de uma fotografia esquecida entre os capítulos dois e três: "Querido Joseph, que este lindo romance sele o nosso romance, também lindo. Espero que você esteja sempre comigo, sempre, para que possamos viver o que o amor reserva de mais bonito. Dois corações que em meio a tanto desencontro, como diria Vinícius, se encontraram. Com carinho e amor, Rebecca". Tomaso, com a foto na mão, não consegue desviar os olhos da calça jeans que a moça veste. A cintura é alta demais e está justa, o zíper não fecha por inteiro, e o botão, muito tensionado, parece que vai a qualquer momento ser disparado como um tiro. O dono do sebo pergunta se Tomaso vai levar o livro. "É uma história para ser esquecida - mas quanto você quer por esta foto?".

domingo, 6 de março de 2011

232 – das biografias, 62



Muitas vezes, a solução encontrada por Roberto para os desafios da publicidade era também uma solução encontrada para seus desfazimentos pessoais. Difícil dizer, contudo, se era a publicidade que resolvia sua vida ou, ao contrário, se era sua vida que resolvia a publicidade. Provavelmente, nem uma coisa nem outra. Certo é que ambas – vida e publicidade – ganhavam muito com isso. Como quando investiu parte da verba de uma conta recém adquirida pela agência em uma mídia imprevista, arriscada – e absolutamente original. Um investimento que, garantindo um retorno que superou todas as expectativas do setor de planejamento, e as expectativas do próprio cliente, rendeu prêmios e entrou para o Top of Advertising – o Livro de Ouro da Publicidade daquele ano. Pois foi após o sucesso dessa campanha que Roberto cortou os cabelos bem curtos, como sempre fazia, deixando mais uma vez a testa à mostra.


sábado, 5 de março de 2011

231 – das biografias, 61



Um flamboyant de flores bem vermelhas. Um gramado jovem, rente ao chão. Por que logo com o seu melhor amigo, pergunta-se Roberto. E por que deixar isso assim, tão evidente, logo ali, no lugar que mais frequentavam; onde estiveram aquela vez que o preservativo rompeu e onde, algumas vezes, deixaram de estar porque perderam o espaço para o sono justo de um mendigo fedido, que coçava o saco por dentro das calças ao vê-la passar. Logo ali, como um talho aberto em sua própria testa, Roberto, como uma cara de bunda, diante do espelho.