quinta-feira, 28 de abril de 2011

284 - das passagens, 15


Séria, ela aponta para a parede vazia e diz para ele escolher um desenho para colocar ali. Diz mais algumas coisas, também, que ele não se lembra mas que o chateiam. Ao mesmo tempo, ela dobra alguns panos, parecem roupas. A casa onde estão vai sendo levada por um rio (ou um furacão) e se destrói aos poucos. Outras pessoas se jogam pelas janelas, mas ficam flutuando no ar, dando voltas; uma menininha até sorri, com seu vestido azul estufado pelo vento.


quarta-feira, 27 de abril de 2011

283 - das atribuições errôneas, 10

Sábado de manhã. Palmas na porta da casa. Ele não olha pela janela, vai direto à porta. E vê: cabelos longos, saia longa, uma pasta na mão. Ela anuncia:
– Bom dia! Eu sou irmã de Jesus Cristo Nosso Senhor!
– Mas puxa vida! Você está muito conservada! Que bálsamo usa?

quinta-feira, 21 de abril de 2011

277 - das passagens, 14


Simples assim, a mensagem em suas mãos trazia seu nome e dizia:


“Não pude mais com a luz que há em casa. Nesta época piora, você bem sabe. Não consigo saber que o azulejo ao lado da janela está trincado (não adianta trocá-lo). E o que está fora da janela parece estar colado dentro das minhas pálpebras. Não consigo saber disso. Que a chuva ecoará a melodia de sempre na calha. E o latido dos cachorros é como um mesmo nome, dito pela mesma voz vezes e vezes seguidas. Parece o meu nome! Esse mundo: é como aquela canção, que vem do fundo da garganta, a rodar na minha cabeça: ... Je vous connais, Milord... Não! Preciso estar... fora... Preciso... acho que preciso do impossível: então não pude mais. Agora ponho-me em direção, em qualquer uma. Para quem sabe um dia.

Seu saudoso e fiel amigo,
A.”


Terminou a leitura com um ar pasmo. “Como assim?” – pensou. E em voz alta: “Quem diabos é A.?!”.


domingo, 17 de abril de 2011

273 - da adequação ao tempo, 23



As movimentações em Santana de Cuparaquem seguem intensas. Os times que participam da final estão em campo e recebem o apoio de suas respectivas torcidas. A PFA (Primeiro Fazemos Amigos), que tem a vantagem de jogar em casa, continua comprovando seu favoritismo, baseado em sua eficiente estratégia de ataque e num histórico de grandes vitórias. Mas comentadores não descartam a importância dos patrocinadores nessas horas de decisão: “Nessas horas de decisão os patrocinadores mostram como são importantes” – afirma um especialista. “Todo o suporte dado e cada mínimo detalhe do equipamento, que no caso da PFA é sempre de ponta, faz toda a diferença”. De qualquer forma, é inegável o desequilíbrio na partida que acompanhamos. “A PFB [Primeiro Fazemos Barulho] está sendo massacrada! Mas eles têm raça, e vão acabar virando o jogo, que eu sei!” – diz seu Valdir, que há mais de 30 anos, além de incentivar o time, mantém a barraquinha que oferece deliciosos pastéis para quem vem presenciar o espetáculo.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

271 - das visões de mundo, 9



Cada quadro exposto é uma vida à mostra. Quem diz que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa não está dizendo nada com nada. Para comprová-lo, basta a lembrança da seguinte situação: uma senhora apostou que certo tom num quadro era resultado de uma mistura com a urina do autor. Com tanta certeza ela falou e tanto dinheiro ela tinha que a hipótese encabulou os críticos e influenciou os negócios, uma vez que a maioria dos potenciais compradores criava esses cachorrinhos horríveis que vivem dentro das casas, comem em pratos, dormem em camas, escovam os dentes, respondem por nomes e se vestem como gente. São raças impressionantes, de fato, que compreendem os mais sutis movimentos do olhar e só faltam falar, de tão civilizadas, mas que podem, infelizmente, em horas instintivas, marcar seu território mirando os pés de um quadro que vale milhões.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

270 - das visões de mundo, 8


Aqui vemos o momento de um esforço inaudito. Há de se levar em conta a dificuldade adicional do ponto de apoio, mantido com os dedos de um só pé, enquanto a outra perna permanece esticada num ângulo de 90 graus exatos. Esse movimento, conhecido como “vôo da águia”, requer plena consciência corporal no instante de sua execução. De outro modo, pode ser fatal. Quando realizado perfeitamente, podemos contemplar o praticante por diversas horas, dependendo, é claro, do seu nível de elevação espiritual. Algumas pessoas dizem ter testemunhado um mestre de 103 anos permanecer “em vôo” por 7 dias seguidos, no alto dos montes Gruiummins, onde venta bastante. Oficialmente, o recorde é de 3 dias, 2 horas e 53 minutos, conquistado por Fleurus Doytsen no último encontro internacional, que reuniu centenas de pessoas nos canaviais ao redor de Ribeirão Preto, no verão.


quarta-feira, 13 de abril de 2011

269 - das passagens, 13


Conjurou uma última eloquência: “Senhoras e senhores...”. Havia uma guitarra ligada a um amplificador – “Senhoras e senhores...” – que tentava uma nota aguda como um coração partido. “... Infelizmente teremos que improvisar...”. Houve algum desconforto nos presentes. “... Nossa convidada de honra não poderá participar de nossa reunião...”. A guitarra errava novamente a nota. “...Ela teve um imprevisto...”. Um homem reclamou que o som estava baixo; a guitarra achou que era com ela e gritou. “... Problema de família...”. Uma mulher disse à amiga que eram os comunistas. “... Daremos andamento à noite com um filme de Wim Wenders...”. Tomadas de possessão, as cordas da guitarra alongaram-se quilômetros.


sexta-feira, 8 de abril de 2011

264 – das biografias, 65


Após meses, Tomaso foi considerado desaparecido por todos, a pouca família, amigos e autoridades, embora Vera seguisse colando, noite após noite, cartazes pelas quebradas da cidade: “Onde está Tomaso? Ninguém sabe, ninguém viu. Polícia vá pra puta que pariu!”. Mas o fato é que a questão não era tão simples assim. E de fato havia uma pista que podia ser significativa para o caso e devia, por isso, ser considerada: sabia-se que Tomaso se preparava para rumar rio abaixo, com o firme propósito de chegar ao litoral; e que ele queria ir sozinho. Antes de sumir, já há alguns dias vinha dizendo que a hora estava chegando. Ele só esperava ter em mãos uma última encomenda, imprescindível para a aventura: um caderno, “o único exemplar manuscrito por esse incontornável pesquisador canadense”, como dizia Tomaso, e que trazia, segundo ele, com riqueza de detalhes, mapas e descrições do vasto território a ser percorrido em total solidão. O sebo virtual onde Tomaso fizera a encomenda, no entanto, estranhamente classificava o exemplar como “caderno de artista”.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

262 - do despertar para a linguagem, 4

Nº 17958

Aos quatorze dias do mez de Abril de / mil oitocentos e noventa e dois, foi sepul / tado no cemiterio da Irmmandade de Nossa / Senhora das Dores em sepultura ra / sa e com o numero seguido deste cemiterio / desecete mil novecentos e cincoenta e cinco [sic], / o cadaver o cadaver [sic] de D. Jxxxxxx Fxx / xxxx de Mxxxxx, branca, Catharinense, / com setenta annos de idade, viuva, e mora / dora nesta cidade, a qual sucumbiu hon / tem às onse horas da noite vitima de / “Dizentiria Chronica”. Do que para constar / lavrei este termo, Eu Mxxxxxx Axxxxx / Dxxxxx, Administrador d’este cemiterio o es / crevi e assignei:

Mxxxxxx Axxxxx Dxxxxx.

<D. Jxxx / xxx Fxxx / xx de Mx / xxxxx, / branca, / no cimite / rio da Ir / mandade / de Nossa Se / nhora das / Dores>: à margem esquerda.


terça-feira, 5 de abril de 2011

261 - do despertar para a linguagem, 3


[Nº 19]-[escrito a lápis]

N 19

Tem de servir este livro para nésse serem lavrados / os termos de obitos deconformidade com § 4º/ do artigo 3º da Lei provincial nº 172 de 6 de / Maio de 1842, vai numerado e por mim / rubricado com o meu Cognome R[xxxxxxxxxx] / de que uso, contamos o numero de folhas / que consta do termo de endossamento -

Secretaria do Conselho de Intendencia / Municipal da Capital do Estado de Santa / Catañ em 14 de março de 1892.

Rxxxxxxxxxx.


segunda-feira, 4 de abril de 2011

260 - da adequação ao tempo, 22

Pesquisas recentes confirmam: quanto maior a massa magra de um indivíduo, maior a sua chance de viver mais e melhor.


domingo, 3 de abril de 2011

259 - do despertar para a linguagem, 2


E quisera eu que isto aqui fosse desde sempre atravessado por um som imemorial, vindo de não sei onde – história, instante ou intestino –, e fosse voltado para fora, sempre fora, assim me constituindo. E quisera eu que este som incidisse ou caísse incontido como se em ondas, bolhas d’água ou explosão, de onde cheiros frescos rememorassem o inaudito anúncio: eis que há isto: dente, dardo ou digestão. E que se dissesse a beleza deste som, como quisera eu ser sopro para afirmar que sou, e sou vivo: como ser vivo e afirmar que sou o som mesmo. Como corpo após carne de porco: como ser o sopro do corpo, sua expiração. E assim começar, pelo baixo fim que se abana no ar diante do nariz; pelo que não se inspira em elevador algum, mas sempre e somente após o primeiro – e num susto já feito o ato –, após o primeiro inspirar de um flato.


sexta-feira, 1 de abril de 2011

257 - das passagens, 12


“Dê uma olhada neste jazigo. Ordinário, não? E mesmo assim me diz tanto... Nem sei exatamente por quê. Não conheço essa pessoa que está aí, se é que ainda há alguém aí. Há um espaço bem marcado, isso sim. É bem preciso, nem que seja para dizer individualmente: ‘Não há ninguém aqui!’. E talvez seja por isso... Deve ser. Não conheço essa pessoa. De qualquer forma, ela parece ter sido feliz, não é? Olhos tão vivos... Você sabe o que há nos olhos? Eu lhe digo: nada. Exatamente isso, nada. São como as cebolas: se você tentar achar o meio de uma cebola, não encontrará. Já pensou nisso? Quando der por si, você terá atravessado ela inteira, e acabou. Mesmo se você for disciplinado, e abri-la camada por camada, pele por pele, dividindo-a em quadrantes de acordo com as três dimensões da ótica. O meio da cebola, sua parte essencial, isso não existe. Há quem diga que é por isso que choramos ao descascá-las. E há quem diga que isso não tem o menor sentido. Esses olhos tão vivos... Nem sei onde começam. Mas agora aí, como em qualquer jazigo: fixados por um retrato entre um movimento e outro, e encerrados nos limites dessas quatro linhas onde deve caber o corpo. Olhos negros: têm a cor daquilo que no fundo aparece mas não podemos identificar. E ainda assim eles têm um nome preciso... Esse nome não basta. Talvez por isso esses olhos sejam lembrados por um longo, um lindo e insuficiente epitáfio.”